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DO BRECHÓ AO VAZIO: A ERA DA NESCIONARIA NA MAÇONARIA CONTEMPORÂNEA

 

Por Rui Badaró

AltStuhlMeister da Justa e Perfeita Loja de São João n. 680

 


DO BRECHÓ AO VAZIO: A ERA DA NESCIONARIA NA MAÇONARIA CONTEMPORÂNEA


A ERA DA NESCIONARIA NA MAÇONARIA CONTEMPORÂNEA

O momento atual é a era do que denominamos "nescionaria" - um neologismo que captura perfeitamente o processo de esvaziamento e banalização que assola a Fraternidade maçônica. Como um brechó que comercializa peças avulsas de diferentes origens, a nescionaria oferece uma versão diluída e fragmentada da Maçonaria, onde valores, rituais e tradições são negociados como mercadorias de segunda mão.

 

Em "As Viagens de Gulliver", Jonathan Swift apresenta um peculiar cientista da Academia de Lagado, obcecado em simplificar a linguagem ao ponto do absurdo. Sua proposta? Substituir palavras por objetos, carregando-os em sacos para estabelecer comunicação. O que parece uma sátira distante encontra, surpreendentemente, um reflexo perturbador na realidade da Maçonaria contemporânea.


O momento atual é a era do que denominamos "nescionaria" - um neologismo que captura perfeitamente o processo de esvaziamento e banalização que assola a Fraternidade maçônica. Como um brechó que comercializa peças avulsas de diferentes origens, a nescionaria oferece uma versão diluída e fragmentada da Maçonaria, onde valores, rituais e tradições são negociados como mercadorias de segunda mão.


Esta transformação não aconteceu da noite para o dia. Foi um processo gradual, impulsionado pela mesma mentalidade que levou o cientista de Swift a acreditar que poderia melhorar a comunicação eliminando sua complexidade. Na Maçonaria atual, testemunhamos uma obsessão similar pela simplificação, que sob o pretexto de "manutenção dos valores tradicionais" e "acessibilidade", destrói a própria essência da instituição.


Observe o processo de iniciação: o que antes era um momento solene de transformação pessoal, precedido por cuidadosa seleção e preparação, tornou-se uma espécie de "liquidação de valores". Candidatos são aceitos em massa, submetidos a rituais realizados de forma apressada, sem atenção aos detalhes da cerimônia e explicações superficiais. Como num brechó onde etiquetas de preço substituem o valor real das peças, a iniciação maçônica foi reduzida a um procedimento mecânico, desprovido de seu significado profundo.


Os trabalhos em loja seguem o mesmo padrão de empobrecimento. As reuniões, que deveriam ser momentos de verdadeiro desenvolvimento moral e intelectual, transformaram-se em encontros protocolares onde rituais são executados mecanicamente, como funcionários entediados de uma loja de departamentos em fim de temporada. A ritualística, antes um veículo de transformação pessoal, tornou-se uma sequência de gestos vazios, executados sem compreensão ou reverência.


A instrução maçônica, por sua vez, assemelha-se cada vez mais a um "outlet de sabedoria". Apresentações superficiais substituem o estudo profundo, explicações prontas tomam o lugar da reflexão pessoal, e a tradição secular da instituição é reduzida a fórmulas simplificadas e conceitos pré-digeridos. Como num brechó onde peças únicas se misturam a produtos em série, a nescionaria nivela por baixo a experiência maçônica.


Este empobrecimento se reflete também na seleção de membros. A quantidade é privilegiada sobre a qualidade, os critérios de admissão são flexibilizados ao extremo, e o compromisso com os valores maçônicos é substituído pela mera conveniência. A Maçonaria, que deveria ser uma escola de virtudes, tornou-se um clube social onde o desenvolvimento moral e intelectual é opcional, visto que os “ágapes” tornaram-se o momento principal.


A nescionaria se vende como uma versão "moderna" (porque resgata uma suposta tradição maçônica que nunca existiu!) e "acessível" da Maçonaria, mas o preço desta suposta acessibilidade é a própria essência da instituição. A prática ritualística é colocada em segundo plano, muitas vezes mal executadas, sem a mínima preocupação em compreender o significado de cada passagem, estudos são simplificados para "facilitar a compreensão", e as tradições são modificadas de forma escancarada por quem não estuda e, assim, não compreende as diversas escolas maçônicas. Como resultado, temos uma versão diluída da Maçonaria, tão distante de sua proposta original quanto o cientista de Lagado estava de uma verdadeira melhoria na comunicação.


Mas, assim como o canário de Machado de Assis que confundia sua gaiola com o mundo inteiro (sugiro a leitura deste texto: https://www.freemason.pt/por-que-temos-contentar-sobras-maconaria/), muitos maçons modernos parecem não perceber o quanto perderam. Acostumados com a versão empobrecida oferecida pela nescionaria (Rizzardo Da Camino e outros prestidigitadores do saber representam exemplo deste empobrecimento com o uso do “javanês”), contentam-se com as sobras de uma tradição que já foi muito mais rica e significativa.


O resgate desta situação exige mais do que simples ajustes superficiais. É necessária uma mudança fundamental de mentalidade. A Maçonaria não é e nunca foi uma instituição destinada ao consumo em massa. Sua proposta de desenvolvimento moral e intelectual exige dedicação, estudo e comprometimento sincero.


Para superar a nescionaria e romper o círculo vicioso que domina a Fraternidade, é preciso primeiro reconhecer sua existência e seus efeitos nocivos. É necessário abandonar a mentalidade de "brechó" e resgatar a dignidade da tradição maçônica. Isso significa restaurar o valor da experiência ritualística, recuperar a profundidade do significado dos rituais e símbolos maçônicos, retomando-se a seriedade na seleção e formação de novos membros.


O verdadeiro desafio da Maçonaria contemporânea não é tornar-se mais "acessível" através da simplificação, mas preservar sua profundidade e dignidade em um mundo que privilegia o superficial e o descartável. Não é possível ou aceitável contentar-se com as sobras das tradições maçônicas, com fragmentos desconexos de um todo que já foi muito mais significativo.


A Maçonaria não é uma loja de departamentos em liquidação, onde valores e tradições são negociados a preço de ocasião. É uma escola de virtudes que exige dedicação, estudo e compromisso sincero com o aperfeiçoamento pessoal e coletivo. Somente rejeitando a mentalidade de brechó e resgatando sua verdadeira essência será possível devolver à Arte Real seu papel transformador na sociedade.

 



1 comentario


Infelizmente estamos na era da quantidadee do caixa fácil. Ví, diversas vezes, iniciações com 90% de probabilidade de fracasso, mas a administração da loja estava focada unicamente no caixa fácil. O que mais me preocupa, é que as potências fazem vista grossa, pois está inteteressadas muito mais na visualização pública.

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