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A MAÇONARIA E A IGREJA CATÓLICA: INTERSECÇÕES E DISTENSÕES

Cídio Lopes de Almeida*


A MAÇONARIA E A IGREJA CATÓLICA: INTERSECÇÕES E DISTENSÕES


Para alguns, o tema já teria ultrapassado a fronteira, permanecendo no posto de controle; para outros maçons, a religião e Deus estariam do lado de fora dessa fronteira.

A MAÇONARIA E A IGREJA CATÓLICA: INTERSECÇÕES E DISTENSÕES

No circuito maçônico, o tema da religião se apresenta de forma peculiar. Se considerarmos a ideia de semiosfera [semiótica + esfera], proposta por Iuri Lotman, segundo a qual vivemos no uso específico da linguagem dentro de um certo circuito habitual — daí a ideia de uma esfera ou bolha de sentido — podemos pensar que, na borda dessa bolha, ou seja, na fronteira, ocorre algum tipo de troca simbólica com o que está fora desse circuito. Assim como nas fronteiras entre países, haveria ali um intercâmbio, neste caso, de sentidos. Na minha apreciação, Deus e o tema da religião cristã ocupam essa fronteira simbólica com a Maçonaria. Para alguns, o tema já teria ultrapassado a fronteira, permanecendo no posto de controle; para outros maçons, a religião e Deus estariam do lado de fora dessa fronteira. Em ambos os casos, a religião e Deus estão situados nesse espaço fronteiriço, e todos realizam algum tipo de interpretação [ou tradução] dessa novidade para o interior da semiosfera maçônica.


Será a partir desta ideia de fronteira simbólica que apreciarei a relação entre Maçonaria e Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), que não é de hoje, mas começou lá no século XVIII e foi tensionada ao longo do século XIX. E com frequência é retomada em nossos dias, seja pelos adeptos da Maçonaria ou pelos da ICAR. A última cena dessa interação deu-se por parte da ICAR, em 2023, através de um pedido de esclarecimento de um bispo [administrador local] situado nas Filipinas. O documento exarado pelo Departamento para a Doutrina da Fé, folha de audiência com o Rei do Estado da Cidade do Vaticano e líder Máximo da ICAR, denominado pelos adeptos deste credo de Santo Padre, indica, em conclusão, a “[...] incompatibilidade entre a fé católica e a maçonaria.” Porém, adiantamos que esta distinção entre dois fenômenos sociais, sobretudo para os nossos dias, significa apenas que são duas manifestações sociais, sem qualquer outra derivação que não seja a de uma convivência em pé de igualdade civil na esfera pública.


Em documento de 1983, citado na audiência acima, a mesma ideia já havia sido tornada pública pela ICAR para os seus adeptos. Nada de novo na conclusão à consulta feita pelo bispo filipino, do ponto de vista da Instituição central dos 'católicos romanos'. Nos dois casos de interdição, observa-se que a proibição dos crentes está circunscrita ao plano doutrinal e ao pastoral, ambos de ordem da vida privada. Não se almeja, como nos séculos XVIII e XIX, um plano de ação para além deste domínio, postura que, de resto, está acomodada nos ideais de democracia de nossos dias.


Situado o documento, a indagação recai sobre os motivos pelos quais tal informação circula vivamente entre os adeptos da Maçonaria. No caso do Brasil, parece já estar bem estabelecido todo o trabalho no sentido de que a ICAR e a Maçonaria são dois fenômenos distintos, e a vida segue. Porém, nas Filipinas, a situação parece estar sendo tomada de outra forma. Ainda que, entre nós, o tema se mostre nesta fronteira de sentido, por sua insistência e interesse acalorado, por vezes ambíguo, leva-nos a levantar uma pergunta hipotética, para ser explorada noutro momento: os maçons gostariam de ser acolhidos pela ICAR algum dia?


Foi neste sentido que, na abertura, falei de um tema de fronteira. Deus, religião e catolicismo romano fazem parte das conversas informais nos círculos maçônicos do Brasil. O tema se apresenta, para em seguida ser dito que ele não faz parte da Maçonaria. Ele não desaparece, mas está sempre nesse lugar. Enquanto tema, é um Outro familiar e, de certo modo, estabelece uma dialética com o que seja a Maçonaria. Podemos dizer que a Maçonaria não é religião se, por esse fenômeno, considerarmos as religiões monoteístas. Porém, enquanto filosofia de vida, a Maçonaria tem traços em comum com tradições 'religiosas' mais filosóficas, e é por isso que persiste o debate na fronteira


Ao superar a ideia monoteísta de religião, compreendendo que há outros tipos de religiões, resta-nos a pergunta: mas então, o que seria uma religião filosófica? Ora, o debate sobre o sentido último da vida é um deles. Se projetamos como fundamento último da vida a felicidade (fazer a humanidade feliz), podemos dizer que isso tem aspectos compartilhados não só com as religiões monoteístas, mas também com outras, como o Budismo e o Hinduísmo.


A dificuldade da comunidade maçônica tem sido dupla nessa conversa de fronteira. A primeira é compreender que houve um processo de 'antimaçonaria' prolongado na história, e não foi só de difamação no estilo 'exposed' dos ingleses. Estamos falando de Tribunal da Inquisição, assassinatos no contexto da ditadura de Franco na Espanha ou no nazismo na Alemanha. Não querer ser associada à religião e à Igreja faz todo sentido nesta cena. O segundo ponto é compreender que o uso de ritualística, linguagem simbólica e o Grande Arquiteto do Universo são temas compartilhados com o fenômeno religioso em geral. E, por esta natureza, qual o problema de admitir para si que uma Filosofia de Vida ocupa o mesmo lugar que as religiões? Aliás, foi por se colocar neste lugar que ela se mostrou concorrente da religião expressa pela ICAR.


Por fim, o liberalismo fez avançar algumas ideias caras para os nossos dias. A democracia baseada em direitos e todo um conjunto de reflexões que foram sendo desenvolvidas sobre o governo do povo (democracia) é um legado do qual a Maçonaria foi parte no século XIX. Essas propostas destituíram os modelos de religião e poder do chamado 'antigo regime'. Os efeitos do liberalismo que a Maçonaria tomou para si, ou com os quais se formou, são e foram ideias e ideais que destroçaram uma modelagem de teocracia na qual a ICAR estava acomodada há mais de mil anos. E por isso, pelo aspecto do liberalismo e do iluminismo/esclarecimento, os ideais da Maçonaria divergiram de modo frontal dos ideais da ICAR, do século XIX até nossos dias. Assumir esse lugar faria com que a comunidade maçônica compreendesse que, sim, ela é diferente e incompatível com a ICAR. E qual o problema disso? Nesse sentido, o maçom deveria assumir conscientemente que a construção do sentido último da existência humana, cultivada por suas práticas, segue uma dinâmica própria


Não se defende a perfeição dos modelos sociais construídos dentro do universo do liberalismo. Ao longo do século XX, os modelos assumidos pela Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e pela Maçonaria mostraram-se complementares para a vida social dos nossos dias. Trata-se de modelagens em constante construção; aliás, ainda hoje, a democracia pode tornar-se mais democrática, recebendo a colaboração de ambos os fenômenos em questão no sentido de evitar sua corrosão pelo capitalismo selvagem, entre outros desafios. Mas será salutar à comunidade maçônica compreender-se como uma Filosofia de Vida, e, por este motivo, ocupar o mesmo lugar que os fenômenos religiosos no horizonte último de sentido das pessoas.


O grande avanço desta dialética entre a ICAR e a Maçonaria é que, atualmente, compreende-se que essas duas realidades institucionais podem, na esfera pública, celebrar seus pontos em comum e respeitar mutuamente suas diferenças. Promover a felicidade da humanidade não é incompatível com os ideais da ICAR e, por esse ponto em comum, os dois fenômenos sociais podem trabalhar em conjunto, sem cair na tentação de reduzir as diferenças, mas mantendo suas identidades enquanto contribuem mutuamente para o bem comum.


* https://amf3.com.br/maconaria-e-catolicos-da-icar/


*Doutorando em Ciências das Religiões, Faculdade Unida de Vitória, bolsista FAPES. Cofundador, com outros 6 Confrades, da Loja XXVII de Setembro, 773, GLESP.

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